terça-feira, 12 de julho de 2011

Notas Cotidianas e Literárias CI

UMA CARTA DE JULIO CORTÁZAR

No extenso artigo Misteriosa entrega e mudança de si mesmo (Piauí, nº 58, jul. 2011, pp. 60-70), Davi Arrigucci Jr. apresenta uma pequena série de cartas escritas por Julio Cortázar ao seu amigo o poeta e pintor Eduardo Jonquières. A correspondência, com quase 130 cartas, ainda é inédita em português, e as cartas presentes no artigo foram traduzidas por Josely Vianna Baptista. Na carta publicada abaixo, Cortázar faz um breve comentário sobre Avalovara, de Osman Lins. E arremata com referências elogiosas à obra de Clarice Lispector e do próprio Osman.
 

Manágua,

24 de fevereiro de 1983

Querido Eduardo:

Pode ser que esta carta chegue até você depois de meu regresso a Paris, considerando que o correio é muito lento nestas latitudes; em todo caso, vou enviá-la para agradecer a sua, que me alegrou receber aqui. Como em viagens anteriores, Tomasello [Pintor e escultor argentino] tratou de me reenviar a correspondência e, de quebra, dar uma olhada no apartamento vazio há tanto tempo. Volto no dia 10 de março, depois de viajar para o México daqui, via Havana.

            Vou lhe falar pouco de mim, estou tão desolado que tenho dificuldade em me reconhecer toda vez que acordo. [Carol Dunlop, a última esposa de Cortázar, falecera em 2 de novembro de 1982.] Só o trabalho vem um pouco em minha ajuda, que não me faltou na Nicarágua. Entre outras coisas, esses loucos tão queridos decidiram me homenagear com a Ordem de Ruben Darío, o que me emocionou muito porque é a primeira vez que a concedem a um estrangeiro. Tive de preparar um discurso e ser protagonista de uma dessas cerimônias que a gente vê tantas vezes no cinema ou na televisão: mas, neste caso, havia tanto carinho por parte dos dirigentes e do público que  o lado protocolar não me incomodou nem um pouco. Deram-me uma fita com a gravação do ato e dos discursos (Sergio Ramírez leu um que reivindica a personalidade inteira de Darío, não somente os cisnes e o modernismo); se quiser podemos passá-la em Paris na casa de alguém que tenha o aparelho de vídeo, e você poderá vislumbrar uma das facetas deste país tão ameaçado, tão pobre e tão amável.

            Afora isso, estive em expedições fronteiriças que me deixaram fraco e destroçado por mosquitos e outros insetos com uma clara vocação contrarrevolucionária. Tentando descansar dessa aventura, fui com os Flakoll a Corn Island, um pequeno paraíso à base de coqueiros e lagostas, a uma hora e meia de teco-teco de Manágua, na costa atlântica. E justamente lá eu tive uma nova cólica renal, desta vez de matar, que me deixou só pele e osso pelas dores, vômitos e pedrinhas por fim expelidas. Não estou nada bem nessa ida para o México, e na volta consultarei Elmaleh para ver como dar a volta por cima. O que mais me custa é lutar contra uma espécie de atonia ou de indiferença que nunca fez parte de minha personalidade; mas hoje em dia a química sabe somo injetar-nos ao menos um grau normal de vitalidade.]

            Alegra-me saber que você gostou tanto de Avalovara, pois ainda que eu não me lembre dele em detalhes, ficou em mim como uma grande experiência de leitura. Coisa como a imagem de “Cecília, rodeada de leões”, perduram em minha má memória destes tempos. Às vezes penso que o que o li de mais forte nos últimos dez anos é a obra de dois brasileiros, Clarice Lispector e Osman Lins; dá vontade, quase, de me aventurar ao português em busca de outras coisas que talvez existam.

Assim que eu voltar nos vemos. Um abraço bem forte,

Julio

Notas Cotidianas e Literárias C

A SUBSERVIÊNCIA E SUAS DIVISÕES

Ângelo Monteiro

A primeira das nossas subserviências é ao tempo. A última moda, uma vez instalada, adquire a consistência dos ditames milenares. Quanto ao passado, retém-se apenas o que houve ou possa ainda haver nele de repetitivo. Assim como o último cacoete se torna dono da situação, uma cólica do passado passa a comandar as nossas vidas. Chamemo-la, pois, de subserviência temporal.

A segunda das nossas subserviências, que se entronca na primeira, é a subserviência antológica. Um soneto cretino do passado, ou uma modinha da mais baixa categoria, agarra-se vigorosamente à nossa sólida memória nacional – aliás, memória sem memória –, como remos presos às costas dos condenados às galés, sem que possamos nos desvencilhar de semelhante feitiçaria. Um poeta brasileiro, que um dia cismou de cantar as pombas, está hoje sentenciado, por toda a eternidade, pela maldição de jamais desprender tais pombas de sua vida. Ai dos condenados às antologias! Ai das pombas ou das cigarras que não morrerão jamais! Entre as condenações, talvez não haja pior, nesses casos, do que se estar condenado a não ser esquecido, pois o esquecimento também salva. Mas é dessa forma que muitos lavam a burra entre nós. Por um nada não são poucos os que chegam à gloria eterna; por um tudo, ao contrário, muitos se defrontam com seu próprio sepultamento sob as dunas do esquecimento e da morte.

            A terceira de nossas subserviências é ao exterior. Basta um débil mental cruzar o Atlântico, em demanda de outros ares, para ganhar entre nós a estatura de gênio. A rendição dos nossos ao que for de fora nos permite a indizível graça de jamais atingirmos o conhecimento de nós mesmos. Só nos rendemos, fora disso, ao que houver de pior dentro da nossa formação. Norma da subserviência do exterior: ser sempre no outro aquilo que não conseguimos ser para nós próprios.

A quarta das nossas subserviências é à convenção de respeitabilidade. Fazer-se respeitável, ou parecer respeitável, veio a constituir-se na ânsia suprema do nosso espírito. A sanção acadêmica, as glórias adquiridas, à dura força, pela autolouvação ou lavação grupal: assim se alcança o remate da nossa trajetória existencial. Essa é a subserviência ao respeitável.

A quinta das nossas subserviências é o culto do chefe, seja qual for o chefe, mesmo sem ser chefe de jeito nenhum: ser chefe é, de certo modo, participar da divindade. Rir e chorar com o chefe: tal a norma de tal subserviência, a subserviência ao chefe. Os múltiplos coronelismos regionais, transplantados para as letras, as ciências e as artes, encarregam-se de fazer o resto até culminar na transformação do culto do chefe em dogma, jamais periclitante ou moribundo. Dessa forma, não poucos têm deixapo de lavar a sua burra. O chefe está em tudo, multiplicado em chefes, embora não haja chefe algum. De um ponto de vista teológico, teríamos a diluição do chefe nos chefes. A infinita multiplicidade deles terminou por gerar uma espécie de panteísmo do chefe.

Outras espécies de subserviência podem se considerar ramificações das cinco formas assinaladas. Essa subserviência ampla, total, abissal – com suas frentes, seus acordos, suas miscigenações ideológicas, etc. –, não seria a nossa forma de nos inclinarmos metafisicamente à totalidade do real que até agora conseguimos apreender?

Esse desejo de lavar a burra, de qualquer jeito, não seria ainda, de nossa parte, uma tentativa de ratificar, pela continuidade da rotina – aqui adorada como um deus ou como o perpétuo devir –, o preceito áureo do deixa-disso, ou do deixa-pra-lá, para ver de que jeito a coisa um dia fica? Lavemos a burra, irmãos. E viva a nossa inocência!
 

In: Monteiro, Ângelo. “Tratado da lavação da burra ou introdução à transcendência”. Escolha e sobrevivência: ensaios de educação estética. São Paulo: É Realizações, 2004.

Notas Cotidianas e Literárias XCIX

DOIS POEMAS DE MICHELINY VERUNSCHK


HISTÓRIA

Desenterrar os mortos
e chupar seus ossos,
sugar seu mosto
de terra e sangue seco,
seu gosto secreto
de anos infindáveis,
arcos,
costelas,
arquitetura.

Se infeccionar com os mortos.
Triturar seus artelhos
de esponja ressequida,
pintar de negro e noite
de dentes e saliva
e abandonar o sonho
viva, muito viva.



ARRECIFE

Desse ponto
partem distâncias imaginárias
que contam
das reais distâncias entre nós.
Um homem posto
à frente de uma janela
é o fantasma de si mesmo
suspenso por linhas
e cores improváveis.
Somos ele
e ele é todos nós
como se não fôssemos
(ainda)
a cidade em seu entorno.
Somos ele
e seus ombros caídos.
Somos ele
e seu rosto roído pelos peixes.
Somos ele
e as ruas estreitas
que o cortam
e que nele se impalam
como postes
travas
e outras saudades sem sentido
(como qualquer outra saudade).
Uma estátua
observa
a constelação das águas.
Sua roupa cinza
se agita
e veste por um instante
a pele nua do rio.
O homem se agita
e com ele
a cidade costurada
em nossas carnes.
Tudo cabe num selo
ou num traggo de cigarro.
Tudo cabe no verde
mais próximo do branco.
Tudo brada:
relógio ensandecido.
Somos o real
e nada somos.
E isso é tudo.

In: Verunschk, Micheliny. A cartografia da noite. São Paulo: Lumme Editor, 2010.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Notas Cotidianas e Literárias XCVIII


ANTONIO CANDIDO
OU O EXERCÍCIO PÚBLICO DA CRÍTICA

Luiz Carlos Monteiro

            Em torno do nome e da figura de Antonio Candido criou-se uma aura de grande prestígio intelectual. Ao longo de sete décadas, sua intervenção no campo cultural brasileiro tem envolvido a crítica literária, a militância política e a atividade docente em universidades paulistas. Nascido no Rio de Janeiro (24 de julho de 1918), Antonio Candido de Mello e Souza passou a infância e a adolescência em Minas Gerais. A essa época, viveu por cerca de dois anos na Europa, para onde viajou em fins de 1928com a família. Apenas em 1936 chega a São Paulo para estudar, onde mora até hoje.

            O ano de fundação da revista Clima – 1941 – coincide com o abandono do curso de Direito e o término de Ciências Sociais. Em Clima, Candido inicia-se na crítica literária. Conta em seu livro Recortes (1993), como abordou Drummond através de carta, solicitando-lhe colaboração: “Em 1943 escrevia a Drummond sem conhecê-lo, pedindo descaradamente colaboração para uma revista de jovens de que eu fazia parte. Ele respondeu com extraordinária cortesia, mandando palavras de estímulo e alguns poemas admiráveis, que depois apareceriam quase todos em Rosa do povo. Escolhemos três, que só foram sair dali a um ano, porque a revista passou por longo eclipse. Mas antes de acabar para sempre, no fim de 1944, pôde publicar em primeira mão um dos poemas mais belos e importantes da literatura brasileira contemporânea: ‘Procura da poesia’”.

            Eram outros componentes da revista Paulo Emílio Salles Gomes (seção de cinema), Lourival Gomes Machado (artes plásticas) e Décio de Almeida Prado (crítica teatral). Oswald de Andrade apelidou-os de “chato-boys”, incomodado porque a apresentação do primeiro número foi dada a Mário de Andrade, seu maior desafeto e intelectual mais respeitado no Brasil à época. Oswald queria significar com o apelido, como lembra um tanto autoironicamente Candido em Vários escritos (1977), rapazes “estudiosos, bem comportados, sérios antes do tempo”. Nesse livro multifacetado, o artigo “No raiar de Clarice Lispector” configura o texto de descoberta da escritora, publicado sob outras versões na Folha da Manhã (atual Folha de São Paulo) e no livro Brigada ligeira (1945). Ao analisar premonitoriamente Perto do coração selvagem, o crítico de vinte e cinco anos afirmará: “Com efeito, este romance é uma tentativa impressionante para levar a nossa língua canhestra a domínios pouco explorados, forçando-a a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério, para o qual sentimos que a ficção não é um exercício ou uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito, capaz de nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente”.

            Em Brigada ligeira, um de seus dois livros de estreia, escreverá sobre o romance Fogo morto, considerado a obra-prima de José Lins do Rego. Talvez pelo fato de caracterizá-lo como “o romance dos grandes personagens”, pouco acrescentará à análise do desempenho ficcional de José Lins, detendo-se preferencialmente na descrição parafrásica de tipos e heróis da decadência rural da burguesia paraibana. Posteriormente, tal procedimento ficará claro no texto “A personagem do romance”, incluído na obra coletiva A personagem de ficção (1987). Utilizará uma argumentação que fará a diferença entre a “necessária simplificação” sofrida por toda personagem na prática romanesca e “a aventura sem fim que é, na vida, o conhecimento do outro”.

            Compartimentado como um dos ensaios ficcionais de Tese e antítese (1978), “Os bichos do subterrâneo” traz à luz a obra de Graciliano Ramos. Não será a primeira vez que Candido estuda o escritor alagoano, tendo lhe dedicado em 1956 um livro inteiro, Ficção e confissão, reeditado em 1992. Em “Os bichos do subterrâneo”, a ficção de Graciliano é avaliada sob três aspectos, distinguidos pelo crítico como romances na primeira pessoa (Caetés, S. Bernardo e Angústia), narrativas em terceira pessoa (Vidas secas e Insônia) e obras autobiográficas (Infância, Memórias do cárcere). E esclarece: “Nos três setores encontramos obras-primas, seja de arte contida e despojada como S. Bernardo e Vidas secas; seja de imaginação lírica, como Infância; seja de tumultuosa exuberância, como Angústia. Em todas elas está presente a correção de escrita, a suprema expressividade da linguagem, a secura da visão do mundo, o acentuado pessimismo, a ausência de qualquer chantagem sentimental ou estilística”.

            Decerto a sua vivência inicial em cidades mineiras do interior levou-o a demonstrar empatia por personagens e seres reais do mundo rural. E a construir painéis interpretativos de reconhecida lucidez e equilíbrio, pois nem sempre escritores e pesquisadores aboletados nas metrópoles se saem bem neste campo. É assim que consagrará a literatura sertaneja de Guimarães Rosa estreante em meados da década de 1940. Desenvolverá também mais à frente, pesquisa sociológica sobre o caipira paulista e seus meios de vida, Os parceiros do Rio Bonito, sua tese de doutoramente em Ciências Sociais na USP.

            Dois livros estabelecem, de modo definidor, o percurso crítico de Candido: O método crítico de Silvio Romero (1945) e Literatura e sociedade (1964). Uma distância de quase vinte anos entre ambos não anula certos princípios teóricos que se encontram bem mais consolidados no segundo. Ao escolher Silvio Romero como autor modelar para as bases de sua crítica – e também para a obtenção da livre-docência na USP –, estava definindo e questionando as relações entre a sociologia e a literatura brasileira no século 19. Isto coincide, do ponto de vista histórico-literário, com a tentativa de decretação de morte do romantismo e consequente ascensão do positivismo crítico, fenômenos preconizados e defendidos por Romero. Tal crítica científica evoluirá, no futuro, para o formalismo exacerbado, de um lado, e de outro, para uma espécie de sociologismo do qual foi injustamente acusado o próprio Candido. Sua crítica, no entanto, como observou José Guilherme Merquior, não renega nunca, em termos assumidamente teóricos, a abordagem sociológica, notadamente em Literatura e sociedade. Em seus ensaios, a análise histórico-literária e formal de obras não sobrepuja o homem e os grupos sociais nelas presentes. Os escritores terão sempre um papel individual e uma função social definida em relação ao público, ao tempo e á contextualização da sociedade em que vivem.

            No entremeio dos dois livros acima referidos, Candido publicou, em 1959, os dois volumes do seu trabalho de maior fôlego, Formação da literatura brasileira (6ª edição, 1981), subintitulado “Momento decisivos”. Escrito entre os vinte e sete e os trinta e três anos, evidencia o seu preparo e maturidade para a extensão e a complexidade das temáticas e períodos literários abordados. Arcadismo e Romantismo são exaustivamente pesquisados, avaliados e estudados a partir de uma concepção sistêmica para a literatura brasileira. Esse seccionamento permitiu uma visão mais aprofundada dos dois movimentos, o que talvez não fosse possível se ele tivesse intentado escrever uma história da literatura brasileira nos moldes tradicionais. À prosa incipiente do Arcadismo, sucedeu-se uma prosa bem mais substancial no romantismo, com a consolidação do romance e os primeiros passos da crítica. A poesia arcádica ainda hoje é digna de nota e a poesia romântica estendeu-se pelo século 20 através, por exemplo, de momentos isolados na poesia de Manuel Bandeira, diretamente influenciado por Gonçalves Dias.

            Em parceria com a mulher, a professora Gilda de Mello e Souza – que, aliás, participou também do grupo de Clima –, escreveu a “Introdução” a Estrela da vida inteira, livro comemorativo dos oitenta anos de Manuel bandeira. A leitura empreendida da poesia bandeiriana é impecável e sem subterfúgios. Identifica-se o forte substrato inicial de confidência e penumbrismo em Bandeira, como a sua superação a partir da noção exata do “momento poético” no qual o poema realiza-se e adquire forma definitiva. A análise tangencia o que há de “essencial” nos versos do pernambucano: “Pode ser que o segredo dessa poesia condensada e fraterna esteja na capacidade de redução ao essencial –, tanto no plano dos temas quanto no das palavras. Essenciais, são a emoção direta da carne e a espontaneidade da ternura, sob as elaborações do sentimento amoroso; é a descrição direta dos gestos na selva intrincada do quotidiano; é o encontro de termo saliente, único, na difusão geral do discurso”.

            A educação pela noite (2000) reúne doze ensaios distribuídos entre poesia, ficção e crítica. Pode-se encontrar neles tanto esboços de história literária colonial e atual, quanto relações definidoras entre política, educação, sociologia e literatura. O ensaio “A nova narrativa” sintetiza, em visão panorâmica e despretensiosa, a ficção brasileira em diversos períodos. Finalizando com a década de 1970, Candido entrevê nesta uma “verdadeira legitimação da pluralidade”. Na sequência ele passa a indigitar o que chama de “textos indefiníveis”: romances que mais parecem reportagens; contos que não se distinguem de poemas ou crônicas, semeados de sinais e fotomontagens; autobiografias com tonalidade e técnica de romance; narrativas que são cenas de teatro; textos feitos com justaposição de recortes, documentos, lembranças, reflexões de  toda a sorte”. Contudo, reconhece o valor de prosadores como João Antônio e Rubem Fonseca, representantes do “realismo feroz”, ou Roberto Drummond, mais voltado para a “ruptura das normas”, com a incorporação de recursos gráficos ao texto.

            Como militante, Antonio Candido vem exercendo a política de modo discreto, porém incisivo e consequente, participando desde a juventude de partidos, conselhos, associações e movimentos de orientação democrática e socialista. Na condição de professor, formou varias gerações de intelectuais, com discípulos como o ensaísta mineiro João Luiz Lafetá, o crítico marxista Roberto Schwarz, a historiadora Walnice nogueira Galvão, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, entre outros. Foi professor visitante em universidades dos Estados Unidos e França.

            A crítica literária destaca-se como a atividade em que mais tem se empenhado. Sua produção crítica e ensaística compreende um vasto material espalhado em numerosos jornais e revistas, dentro e fora do Brasil. Sem esquecer que há mais de quarenta anos deixou de colaborar regularmente na imprensa diária, após a experiência de crítico em jornais como a Folha da Manhã, o Diário de São Paulo e O Estado de São Paulo (no qual planejou seu Suplemento Literário). Além disto, quase todos os seus livros tiveram mais de uma edição, exceto os mais recentes, havendo casos de um ou outro receber edições sucessivas. Alguns deles ficaram guardados por um tempo talvez desnecessário, a exemplo de Um funcionário da monarquia (2002), que já estava pronto em 1985. Refere-se à biografia de Antonio Nicolau Tolentino (1810-1888), bisavô de Candido. De origem modesta, este personagem entrou no serviço público como contínuo de repartição e chegou a ocupar a direção da caixa Econômica e a presidência da Província do Rio de Janeiro.

            No poema “Esboço de figura”, que dá título a um livro em homenagem a Candido, Drummond assim o definiu: “Arguto, sutil Antonio,/ a captar nos livros/ a inteligência e o sentimento das aventuras do espírito,/ ao mesmo tempo em que, no dia brasileiro,/ desdenha provar os frutos da árvore da opressão,/ e, fugindo ao séquito dos poderosos do mundo,/ acusa a transfiguração do homem em servil objeto do homem”.


Inédito, 2003






quinta-feira, 23 de junho de 2011

Notas Cotidianas e Literárias XCVII

PROFUNDAMENTE

                                            Manuel Bandeira

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente

                                  *

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó 
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão  todos eles?
- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

In: Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.

domingo, 12 de junho de 2011

Notas Cotidianas e Literárias XCVI

A CONFERÊNCIA DO EXISTENCIALISMO


            “Sucesso cultural sem precedentes. Empurrões, socos, cadeiras quebradas, mulheres desmaiadas. A bilheteria do saguão para a venda de ingressos fica irremediavelmente abalada, destruída, reduzida a escombros: ninguém consegue comprar coisa alguma. Beigbeder e Calmy se mostram sucessivamente contentes, preocupados, enlouquecidos, apavorados, constrangidos, arrasados, impotentes diante desse ímpeto catastrófico. Gaston Gallimard comparece, assim como Armand Salacrou e Adrienne Monnier. A multidão compacta, nervosa e exasperada pelo calor causticante de outubro, esperneia sem dó nem piedade, impedindo a entrada de qualquer pessoa. Só uma vez, entretanto, tem um pouco de consideração, quando surge o casal de artistas Jean-Louis Barrault e Madeleine Renaud: então, única exceção, os socos e ferimentos cedem lugar à deferência mundana. Sartre chega sozinho, de metrô, lá de Saint-Germain-des-Près. Quando dobra a esquina e enxerga a multidão tão densa e ameaçadora que se comprime diante do prédio das Centrais onde deve falar, diz consigo mesmo, curioso: “Ora, só podem ser comunistas se manifestando contra mim!” e até pensa em dar meia-volta. Segue em frente, porém, mais por consciência profissional que pela vontade real de enfrentar a maré humana que julga hostil e entra, sem convicção, no auditório. Mais de duzentos, trezentos ouvintes acotovelados; quantos conhecem o rosto dele? E logo Sartre, a última pessoa capaz de dizer: “Sou eu, Sartre, abram caminho, por favor, com licença”? Portanto, não diz nada e se deixa levar, para frente e para trás, da direita para a esquerda, ao ritmo de cotoveladas, batidas de cadeira e de bengala, e vai indo, arrastado por fluxos benéficos, aos poucos, brutalmente, até a parte da frente da platéia: o percurso, da porta da entrada ao estrado onde deve falar, dura mais de quinze minutos. Com mais de uma hora de atraso, numa sala superabafada, apinhada de gente superexaltada, o conferencista começa a falar.
            Claro, sem consultar anotações e, na medida em que a promiscuidade dos ouvintes permite, de mãos no bolso. De saída, defende o existencialismo das críticas comunistas: “filosofia contemplativa, de luxo, burguesa”; das críticas católicas: “sublinhar a ignomínia humana, mostrar o lado hediondo, viscoso, de tudo”. Depois apresenta, sucinto, o seu propósito: esclarecer o sentido dado a “humanismo”, tentativa de definição do “existencialismo”: “uma doutrina que torna a vida humana possível”. O conferencista, em seguida, com astúcia, se espanta com a moda da palavra “existencialismo” que “hoje”, explica, ”adquiriu tamanha amplitude de extensão que não significa mais absolutamente nada... Trata-se, na realidade, da doutrina menos escandalosa e mais austera, estritamente destinada a especialistas e filósofos”. Tendo assim delimitado as fronteiras, vedado a entrada do território a intrusos, críticos e ladrões de conceitos, e reassumindo seu lugar favorito – a filosofia –, inicia um verdadeiro curso filosófico, tão especializado e austero quanto prometeu, apesar da heterogeneidade da platéia, do mundanismo da afluência, ignorando solenemente a correnteza da maré, as cadeiras quebradas e os desmaios. Mantém-se na linha que se propôs no momento em que aceitou a conferência, confirma o pacto com o rigor de seu propósito e não cede uma só polegada. Os Schweitzer apreciariam esta retidão de conduta, esta desenvoltura com o sucesso, este espírito de conivência que não lhe deixa, nesta noite, cair em nenhum cabotinismo?
            Os ouvintes comprimidos, entusiasmados, asfixiados, agüentam, pois, análises concisas e exatas das teorias de Jaspers, Gabriel Marcel, Heidegger, Kierkegaard, Kant e Auguste Comte; e também uma avalanche de referências a Voltaire, Diderot, Dostoiévski, Zola, Stendhal, Cocteau e Picasso. É uma apresentação bem-argumentada e interessante, magnífica e séria, que define conceitos já preparados no “Esclarecimento” que redigiu para o jornal Action e as críticas comunistas em dezembro do ano anterior; o conceito de “indivíduo”, de “responsabilidade”, “angústia”, “compromisso”, “isolamento”, e retoma certas fórmulas de impacto: “O existencialismo qualifica o homem pela ação que empreende”; “Diz que a única esperança que lhe resta é a ação e que a única coisa que lhe permite viver é o ato”; “Um homem se compromete com a vida, traça seus limites e, fora deles, não há nada”; “Estamos sozinhos, sem justificativas. É o que eu diria ao declarar que o homem está condenado a ser livre.” Acaba desistindo de certos conceitos incômodos ou mal-empregados, como “desespero” e “História”. Depois, feito mecânico ou garagista que termina de consertar um motor, afasta-se lentamente do objeto que acaba de desmontar e montar de novo, com toda a naturalidade de alguém que fez seu trabalho sem ser importunado em sua concentração cotidiana, e se felicita que o existencialismo seja “um otimismo e uma doutrina de ação”. De passagem, consegue realizar a façanha de inventar a definição do “humanismo existencialista” e, acima de tudo, de apresentar uma categoria de indivíduo com o qual todo mundo pode, então, se identificar: “o europeu de 1945”. Indivíduo que Sartre coloca no centro do mundo, com o poder de compreender “qualquer projeto, até de um chinês, de um índio ou de um negro”. Sujeitinho mágico, esse europeu de 1945 não vai demorar a ficar rico. O conferencista-mecânico se afasta, portanto, de sua máquina. A fase inicialmente prevista, que deveria, de saída, comportar uma discussão com os detratores presentes na sala, está cancelada por falta de lugar e de tempo. O conferencista vai embora.
            Na manhã seguinte, por volta do meio-dia, Marc Beigbeder encontra-se com ele no café de Flore. A fim de pedir-lhe, para começar, desculpas pela lamentável desorganização da memorável noitada. E em seguida expor-lhe as dificuldades que doravante terá de enfrentar: havia prometido, lógico, uma remuneração pela conferência, mas o clube agora vai desembolsar uma quantia bastante vultosa, sem nenhuma reserva financeira: aluguel do auditório, anúncios nos jornais, prejuízos materiais, enfim, pois o diretor das Centrais fez uma relação das cadeiras quebradas... Beigbeder não tem tempo de acabar a lista das dívidas futuras: “Ora, quanto ao meu pagamento, claro que você não precisa se preocupar!”, sugere Sartre. “Aliás, pelo visto, foi um êxito!”, exclama, mostrando os artigos dos jornais matutinos, que estava lendo diante de sua xícara de café com croissants.”

In: Sartre: uma biografia. Annie Cohen-Solal; trad. Milton Persson. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2008, pp. 296-298.

sábado, 11 de junho de 2011

Notas Cotidianas e Literárias XCV

REVISTA BRAVO!

No número mais recente (166,  junho/2011), a revista Bravo! publicou um artigo assinado por Paulo Nogueira, sobre polêmicas entre escritores, intitulado "Palavras publicadas, palavrões impublicáveis". Romancistas, poetas e críticos literários participam com frequência constante de embates venenosos e virulentos, às vezes com desfechos danosos, violentos. Do artigo citado (pp.82-85), retiramos o trecho da polêmica Vargas Llosa vs. García Márquez, dando os devidos créditos à Bravo!:

VARGAS LLOSA X GARCÍA MÁRQUEZ

"Um segredo que durou mais de 30 anos foi a razão pela qual Mario Vargas Llosa esmurrou Gabriel García Márquez no dia 14 de fevereiro de 1976. Também nessa rixa a antipatia começou como empatia - tanto que o colombiano convidou o peruano para ser padrinho do seu filho Gabriel. Ambos partlharam o expatriamento em Barcelona, onde foram bons vizinhos. Até que, no dia fatídico, Llosa  infligiu ao ex-cupincha um olho negro digno de um panda (há uma foto de García Márquez estropiado, feita por Rodrigo Moya).
É certo que havia potenciais melindres. Ao longo da vida, Gabo observou uma marmórea otodoxia esquerdista, apoiando impavidamente o ditador Fidel Castro, com quem desenvolveu um afetuoso relacionamento. Justificava-se alegando que a estima transcendia ideologias: "Poucas pessoas sabem que Castro é um leitor voraz, que ama e conhece a melhor literatura universal". Reinaldo Arenas e Cabrera Infante, autores cubanos expulsos da ilha por divergência de pensamento ou comportamento, que o digam. Márquez nunca condenou a aplicação da pena de morte na ilha - sentença a que sempre se opôs em outras paragens. Recorda uma cutucada de Albert Camus em Jean-Paul Sartre (uma desavença que fica para  a próxima): "Certos intelectuais progressistas são fundamentalmente benevolentes e humanos, e amam as pessoas miseráveis muito mais do que as amariam na prosperidade". Contudo, não foram as discrepâncias políticas que ditaram a pancadaria na Cidade do México. Nem o despeito literário: mais cedo ou mais tarde, ambos embolsariam o Nobel. Para decifrar o mistério, convém seguir o clichê policial: "Cherchez la femme" (procure a mulher).
O arranca-rabo ocorreu em um cinema mexicano, durante a estreia de um filme então badalado e hoje misericordiosamente esquecido. Quando acabou, Gabo  avistou o amigo e se encaminhou para ele de braços escancarados. Foi recebido com uma patada no olho esquerdo. Com o sangue a jorrar-lhe, Márquez ainda conseguiu ouvir o agressou espumar: "Como se atreve, depois do que você fez a Patrícia em Barcelona?" A turma do deixa-disso entrou em cena, enquanto alguém trazia um bife cru para o olho intumescido.
Quando Gabo fez 80 anos, uma biografia esclareceu o mistério. Com a sua pinta de cantor de tango, Llosa jamais escamoteou um fraquinho pelas damas. Numa viiagem aérea, apaixonou-se por uma aeromoça sueca, abandonou a mulher e tocou para Estocolmo. Furiosa, Patrícia correu para a casa de Gabo, que a consolou. Ninguém sabe a forma que o consolo assumiu. Contudo, Márquez sugeriu o divórcio. Outras fontes atribuem a Gabo a pior traição que se pode cometer contra um amigo. Eventualmente, Llosa voltou para o lar com o rabo entre as pernas, e Patrícia lhe contou o conselho de García Márquez (e talvez do efusivo consolo). Daí o murro."